Brasília, 02 de outubro de 2020 Nós, entidades abaixo assinadas, que atuam no direito à cidade, pelo patrimônio histórico e cultural, e no combate a qualquer forma de violação de direitos humanos, manifestamos nosso repúdio às ações que vêm sendo tomadas pelo Governo do Distrito Federal junto à população, particularmente aquela em situação de rua e vendedores ambulantes. Nas últimas semanas, temos observado nas diferentes Regiões Administrativas (RAs) ações arbitrárias de retirada das pessoas que moram e trabalham informalmente na rua. Justo em um momento de pandemia, no qual a pobreza e o desemprego se ampliaram no Brasil e no Distrito Federal: a taxa de desocupação atinge 19,2% (DIEESE, agosto de 2020) no DF, acima dos já alarmantes 13,7% (IBGE, setembro de 2020) para o Brasil. As ações que estão sendo tomadas pelo GDF estão pautadas em discursos higienistas e segregadores, fazendo valer uma política de retrocesso preocupante. Em estudos urbanos, as políticas higienistas são entendidas como aquelas que historicamente retiravam os pobres dos locais privilegiados e consideravam isso “embelezamento das cidades”, com ações conservadoras e excludentes, tendo como desculpa a garantia da saúde pública. Em todo o DF tem-se visto moradores em situação de rua e vendedores ambulantes tendo seus pertences destruídos ou tomados à força, em ações do DF Legal e/ou da Polícia Militar. Essas pessoas - que incluem aqueles em situação de extrema pobreza, com transtorno mental, desempregados, pessoas com redução significativa de renda durante a pandemia, entre tantos outros -, deslocam-se de seus lugares de origem em busca de melhores condições de vida, a partir de localidades periféricas do DF ou de outras cidades. Ocupam espaços privilegiados nas RAs como áreas centrais do Plano Piloto de Brasília. Década após década, são tratados como se não fossem parte da cidade, devendo ser transferidos para áreas cada vez mais distantes. Figura 1. Transferência das famílias que viviam próximas ao Plano Piloto para a atual Ceilândia, década de 1970. Acervo do Arquivo Público do DF. Figura 2. Ação do DF Legal para remoção forçada de famílias residentes em área próxima ao CCBB há mais de 30 anos. Foto: Bruno Stuckert. Disponível em: http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1625 Se uma ambulante, por exemplo, se desloca diariamente por pelo menos duas horas e em dois ônibus, da periferia ao centro, é porque é ali que ela conseguirá vender seus produtos e assim garantir o sustento de sua família. Mas o GDF acha que, para trabalhar, ela precisa se cadastrar em sua RA. Se um vendedor de balas decide morar no Setor Comercial Sul (SCS), ele não dorme na rua com sua família porque quer, e sim porque foi a alternativa que encontrou. Mas o GDF acha que a oferta de moradia em áreas centrais só deve acontecer se os especuladores imobiliários e empresários o fizerem. Se um alcoólatra foi viver na rua, longe de seus laços, por não conseguir conviver em seu ambiente familiar, é porque talvez não tenha encontrado outro caminho. Mas o GDF acha que em quinze dias vai resolver o problema da população de rua do SCS e que não precisa mais de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) por lá. As justificativas que vem sendo trazidas pelos governos, em geral, são fundamentadas na garantia da ordem urbanística, além da defesa do patrimônio histórico do Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB). Entretanto, a política adotada vai de encontro às discussões progressistas tanto nas questões urbanísticas quanto em relação ao patrimônio. Do ponto de vista urbanístico, muito se discute desde a década de 1960, com Jane Jacobs e outros importantes estudiosos, sobre os danos de um planejamento higienista e de uma cidade setorizada e hierarquizada socialmente para a qualidade de vida urbana. Além de formar indivíduos que não sabem dialogar com o diferente, por crescerem dentro de suas “bolhas”, essa lógica fortalece os processos de segregação e aprofunda as desigualdades sociais. Processos de segregação estruturais, como observamos no Distrito Federal, não serão rompidos de uma hora pra outra. O Estado não pode agir de modo impositivo e discriminatório sobre quem já é excluído e invisibilizado. Deve sim promover processos de mediação e ampla participação social na construção das políticas públicas. Quanto ao patrimônio, é importante ressaltar que ele não é estático e engessado. Ao contrário, o conceito de patrimônio evoluiu nas últimas décadas para o entendimento de que os conhecimentos, valores e práticas do quotidiano são elementos fundamentais da cultura, e devem ser preservados enquanto memória construída socialmente e historicamente. A partir desse entendimento - que fundamenta a proteção do patrimônio imaterial, por exemplo -, o tombamento de Brasília não pode estar amarrado a um plano, a uma ideia, sem considerar a dinâmica viva do território. O Plano Piloto como patrimônio deve incorporar os diferentes atores que fazem a cidade existir e que protagonizam os usos e atividades que configuraram, na prática, a identidade do lugar. Sempre fizeram parte dessa identidade da área central de Brasília os ambulantes da Rodoviária, que com seus sons e modos de ocupar o espaço são marcantes na dinâmica própria dessa porção da cidade, da formação de sua imagem no imaginário da população. Figura 3. Ambulantes na plataforma da Rodoviária Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/11/18/ambulantes-sao-proibidos-de-vender-na-esplanada-dos-ministerios-e-no-centro-de-brasilia.ghtml É incabível, portanto, que as ações do GDF utilizem de argumentos pautados em questões urbanísticas e de patrimônio para justificar suas atitudes violentas, arbitrárias e de violações dos direitos humanos. Isso sem falar que infringem diferentes arcabouços legais, como a Lei Distrital 6.190/2018 e o Decreto 39.769/2019, que regulamentam a atividade ambulante, e a Lei 6.657/2020 que estabelece diretrizes para enfrentamento da COVID-19 nas periferias e proíbe a remoção de ocupações e a efetivação de ordens de despejo.
O GDF deve interromper imediatamente essas ações e determinações e modificar sua abordagem sobre o centro. Isso inclui cessar as remoções forçadas de pessoas em situação de rua, dos ambulantes, e todas as pessoas que se encontram em situação vulnerável. Inclui também a revogação da Ordem de Serviço no. 135/219, emitida pela Administração do Plano Piloto, a qual utiliza de forma arbitrária o tombamento de Brasília para justificar atitudes higienistas, com intuito claro de afastar a população vulnerável das áreas nobres do Plano Piloto. Seguiremos nos posicionando e lutando pelos conceitos acima colocados, entendendo que é nosso papel como entidades trazer educação urbanística e patrimonial a todos os cidadãos, incluindo nossos governantes. Assinam:
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Por uma Agenda para as cidades brasileiras Na oportunidade da passagem de um ano das manifestações de junho de 2013, iniciadas a partir dos problemas urbanos das grandes cidades do país, o Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento do Distrito Federal, por meio de sua Comissão de Políticas Urbanas, instalada em março deste ano, conclui seu primeiro semestre de trabalho com este documento. 1 A Cidade é a grande Agenda do século XXI, assim como o foi o ambientalismo a partir da década de 70 do século XX. O mundo, nesta segunda década do século XXI, já tem mais população urbana do que rural, fato ocorrido no Brasil em meados da década de 60 do século passado. O país conta mais de 85% de população urbana, dado revelador da ausência de políticas efetivas sobre a ocupação no território de modo articulado e planejado. Grandes eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas não são a causa das mazelas no espaço urbano brasileiro, mas escancaram nossos problemas de gestão e de governança, bem como nossas deficiências estruturais, tais como a de mobilidade e, em especial, a exclusão sócio-espacial. Esses problemas levam gradativamente à resolução dos conflitos pela idéia da “justiça com as próprias mãos”, por um lado, e pelo uso da força, truculência estatal e autoritarismo, por outro. Não se conhece, na história recente, o fenômeno de êxodo urbano. Urge, portanto, reorganizar o território, descentralizando-o e articulando-o em redes de pequenas e médias cidades, evitando a polarização em poucas metrópoles. Necessitamos de cidades compactas, o que não implica densidade desmesurada. Entretanto, ao contrário do que se intui a partir da percepção do “caos urbano”, calcado na imobilidade e no privilégio ao automóvel particular, as metrópoles brasileiras de hoje são significativamente menos densas do que eram 50 anos atrás. A expansão desordenada, patrocinada pelo Estado e pela sociedade brasileira por meio de projetos e políticas urbanas desintegradas, promove a exclusão sócio-espacial ao distanciar a parcela mais pobre da população do acesso aos serviços públicos. Vidas são perdidas em horas gastas no trânsito, problemas de saúde pública são exacerbados e o custo de uma economia imóvel torna-se alto. Todo o Brasil perde com a opção pelo rodoviarismo individual. Uma ocupação territorial mais intensiva que extensiva consome menos recursos naturais e tende a tornar-se socialmente mais justa, viabilizando o direito à cidade, como preconiza o Estatuto da Cidade. 2 Os dados censitários mostram que mais do que novas casas, precisamos reconstruir a noção de cidade, qualificando e reformando imóveis precários, sobretudo aqueles abastecidos de infraestrutura. Responsabilidade com a cidade e o meio ambiente é não desperdiçar recursos. O programa Minha Casa Minha Vida, apesar de correções bem-vindas ao longo de sua ainda curta história, vem se apresentando, na prática, mais como incentivo e subsídio estatal para a economia, do que propriamente uma política habitacional. Não leva em conta a complexidade do espaço urbano e soma casas, mas não faz cidade. Pior: torna-se vítima dele mesmo ao promover o aumento excessivo do custo da terra, afetando e até desestabilizando a economia nas cidades pequenas e médias. A localização e qualidade da inserção urbana e da própria obra construída devem ser o tema central na política habitacional. Entre outras ações, é preciso levar a população, sobretudo a mais carente, a ocupar os centros abandonados das cidades, aproximando a moradia do trabalho, da oferta de serviço e das opções de lazer. 3 Os programas de subsídio fiscal à indústria automobilística e de combustíveis, em conjunto com a opção pela ocupação espraiada, vêm agravando o caos urbano ao promover a “imobilidade” nas cidades brasileiras. Para as grandes cidades, só há solução para o transporte público a partir de um planejamento que evite o movimento pendular e constitua cidades sem pólos predominantes, com fluxos difusos, integrando transporte de alta capacidade e eficiência, isto é, metrô e trem, aos de média e pequena capacidade de abrangência vicinal, como os ônibus. Não há política urbana calcada na mobilidade e no direito à cidade que não gere conflitos e seja, em um primeiro momento, impopular, assim como não há política de transporte público que não dificulte e imponha restrições ao automóvel individual 4 Planejamento Urbano e Territorial não se faz obedecendo aos tempos e interesses eleitorais. Necessitamos de um profundo e novo pacto social, a partir da constituição real do poder comunitário, que considere a universalização e a qualificação do que é público. Para tanto, o IAB-DF, por meio de sua Comissão de Políticas Urbanas, reivindica a criação de Institutos de Planejamento Urbano, como autarquias independentes, multidisciplinares, com atribuição para formulação de políticas urbanas e habitacionais, mas também com o poder de programar e projetar as cidades brasileiras. A Comissão de Políticas Urbanas do IAB-DF. |
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