As quatro escalas de Brasília: Bucólica, Gregária, Monumental e Residencial. Fonte: Ilustrações da autora Maria Elaine Kohlsdorf. Hoje, silente 21 de abril do estranho 2020 e sessenta anos da inauguração de Brasília, atendo convite do IAB–DF para meditar sobre a cidade que me adotou há mais de quatro décadas. Agradeço à nossa associação profissional, aqui instalada simultânea ao novo centro decisório, mas cuja história precede as primeiras escolas de Arquitetura no Brasil, fundadas com expressiva contribuição do IAB. E, entre inúmeras e diversificadas ações a marca-lo desde sua criação em 1921, é notório seu papel na transferência da capital brasileira para o Planalto Central, das decisões políticas ao concurso para o Plano Piloto, à sua construção e à presença crítica e edificante do IAB-DF na biografia brasiliense.
A esfera pessoal reserva ao IAB significativos aportes, aos quais eu jamais retribuirei devidamente. Ainda adolescente, sua imersão na vida porto-alegrense me apresentou a um campo profissional culturalmente integrado, belo e necessário em um país que tentava se reconhecer como verdade histórica de cruéis diferenças sociais espelhadas nas arquiteturas de suas cidades. Como estudante de Arquitetura, o IAB-RS e depois, sua seção carioca, doavam saberes e iam conosco às lutas nos anos de chumbo; nossos mestres pertenciam tanto às Universidades, quanto ao IAB, que incluiu nossa colação de grau em sua festa anual e celebração dos 60 anos de nosso Paraninfo Oscar Niemeyer, no Museu de Arte Moderna, Aterro do Flamengo. Tempos em que as seções do IAB nos supriam com cursos complementares em parceria com centros de pesquisa latino-americanos, enquanto se gestavam os programas de pós-graduação brasileiros. Anos depois, eu abraçava a opção docente na UnB quando o diretor de sua escola de Arquitetura e presidente do IAB, Miguel Alves Pereira, liderava grupo de arquitetos e alunos fiadores de mais uma reabertura desse curso no turbulento período militar. Além dessas instigantes sincronias, desfruto até hoje de suas atitudes de apoio, carinho e respeito. Escrevo hoje sobre Brasília com mais incertezas do que há 46 anos, embora nutrida pela adoção recíproca desta cidade que se oferta a meu viver e a meus estudos. E também alimentada por pródigos aportes muitas vezes, anônimos e vindos de consagrados pensadores tanto quanto, dos quase três milhões de habitantes que tornam real, o sonho dos pioneiros, do Patriarca e dos envolvidos em seu projeto. Pois, cidades se concretizam mediante os que nelas estão, cotidiana ou esporadicamente e todos se infiltram neste artigo, sem citações dada sua quantidade ou anonimato, aos quais devo minha jamais suficiente gratidão. A Brasília que agora vejo limita-se às janelas de nossa morada em uma superquadra antiga da Asa Sul, onde nos isolamos socialmente há quase dois meses devido à atual pandemia. Elas mostram cenas diferentes quando observadas de ambas as fachadas que nos brindam com farta insolação e ventilação, privilégios negados à maioria de habitantes do Distrito Federal e de seu entorno. Aqui criamos nossas filhas, que a transformaram em casa de avós invadida pelo bucolismo lá de fora, em sua ‘versão superquadra’. Traços bucólicos persistem nas demais ‘escalas’ do Plano Piloto, atento ao recado de Mestre Lucio no Decreto n° 10.829 / 87, como “extensas áreas livres (...) contígua a áreas edificadas (que) marcam a presença da escala bucólica” e efetivam a ‘cidade-parque’. Contudo, eles se desbotam nos setores centrais quando o limitam a extensos gramados com árvores esparsas nos trechos monumentais, ou o substituem por jardins minguados nas demais áreas. Volta a ressurgir em remanescentes de cerrado nas bordas da área tombada, mas é subtraído na orla do lago Paranoá, desobediente ao artigo 11 do mencionado decreto porque não se resgatou o “acesso público à orla do Lago em todo o seu perímetro (...).” Antes, porém, de continuar em nossas janelas e olhar para a Cidade-Patrimônio, preciso contextualizar as janelas e o território visualizado. Vivemos na Cidade-Parque, pequena, bela e simbólica porção da cidade verdadeira, a qual escapa desde sempre dos limites do Plano Piloto. Seja isto, por preexistência de núcleos urbanos (Planaltina e Brazlândia), acampamentos de obras e favelas; seja por governanças criadoras de precoces ‘satélites’ a afastarem trabalhadores pobres, de seus locais de trabalho; seja pela profusão de condomínios que exponencializam os endêmicos problemas da cidade real. Ela segue a apartação própria à urbanização brasileira, porém mais excludente graças ao exagerado esgarçamento de seu tecido, cujo não detém sequer atenuante ecológico porque ocupa-se sem qualquer respeito, um substrato delicado. São várias bacias com aquíferos modestos protegidos por frágeis matas e, no quadrante norte do quadrilátero do DF, as nascentes de duas portentosas bacias brasileiras (Amazônica e Rio da Prata). A baixíssima compacidade de ocupação obviamente onera infraestruturas e o aumenta o preço das terras, ambos auxiliados por opção de sistema convencional e centralizado, cujas redes chegam aos núcleos habitacionais mediante quilômetros de tubulações ociosas transitando por extensos vazios. Estes também incidem nas conexões de transportes com custos agravados por serem em modos dispendiosos e nada mitigadores da sofrida quantidade de horas gastas no pêndulo entre casa e trabalho. Então: como celebrar o aniversário de hoje esquecendo que a ‘Brasília desejada’, ainda concentra maioria dos postos de trabalho, mas nega moradia próxima à maior parte das pessoas que dela fazem uma cidade? A este cenário inquietante se opõem as cenas de nossas janelas que abrem para o nor-nordeste; através delas, a escala residencial (ou ‘cotidiana’), logo remete ao imaginado por Mestre Lucio. Pois aqui, a superquadra verdejou por árvores frondosas, muitas delas frutíferas trazidas por moradores quando revisitavam suas origens; foi povoada por pássaros variados e vestiu seu genius loci de verde acolhedor para se ‘morar no bosque’. Esta ‘escala aprazível’ sobrevive malgrado pilotis fechados além do admissível à garantia de sua identidade, que não prescinde de pedestres livremente atravessando, entre pilares, o rés-do-chão no localismo habitacional. Ela resiste à excessiva largura de suas vias, mais convidativa à velocidade do que ao sossego desejável à moradia, e de amplos estacionamentos devorando remansos. As janelas a sudoeste nos mostram, entretanto, maiores prejuízos à identidade desta ‘escala’ porque elas emolduram a transfiguração do comércio local em central, fenômeno que deixou o Plano Piloto sem centro urbano e, todavia, policêntrico; sem ir-se ‘ao centro’, mas ‘às comerciais’ de suas Asas...e se estacionar dentro das superquadras. A duras penas resta, nas fisionomias dos comércios locais, a pouca altura de seus edifícios, posto sua volumetria ser modificada por ‘puxadinhos’, passagens desfeitas, imensos reservatórios d’água e outros elementos portentosos. A estas mudanças, não escapou se substituírem configurações de bosques por minguados jardins ornamentais evocativos do gregarismo deslocado do lócus para ele, previsto. Isto com certeza trouxe esvaziamento comercial aos setores centrais estruturantes da ‘escala gregária’ do ‘centro urbs’. Porém, o fator primordial à desconstrução da ideia gregarista (que, associada às demais ‘escalas’, alicerça o projeto original de Brasília), foi o modelo insular de seu correspondente território. Ele se fez com invencíveis separações por meio de largas vias e desníveis piramidais entre setores e dentro deles, assim impondo desertificação de pessoas às áreas públicas. Exceção a esta regra, o Setor Comercial Sul (embora apartado de seus vizinhos por vias expressas e taludes altíssimos) não deixa de ser uma ilha sedutora ao ‘instinto humano de viver em bando’, como dicionaristas definem o gregarismo. Ao contrário, o outro centro é tão emblemático quanto os territórios residenciais, pois sua identidade monumental permanece forte e íntegra. Impávido, nele o genius loci, vestido a caráter, é contudo, leve, mas dificilmente atrai e aproxima pedestres. Talvez porque importe destacar edifícios, os significativos e os nem tanto, todos eles, isolados, distantes e apoiados sobre a base lisa de asfalto e forragem, indiferentes a árvores dispersas na imensidão da Esplanada e na parte oeste do Eixo Monumental. O centro civitas é território aberto ao céu e ao sol do Planalto Central, que não se esvazia de pessoas apenas em ocasiões efêmeras. Finalizo estas linhas alertando terem sido elas hoje possíveis, apenas de modo intimista, emprego da singular primeira pessoa e arriscadas imprecisões. Talvez nelas transite a conclusão de presença hoje em Brasília, de suas ideias fundadoras; se deste modo lhes aparece, tudo bem porque assim me parece. Importa, porém, que tal constância testemunha força e resiliência no plano de Lucio Costa, frente a um andar do tempo menos cuidadoso do que ameaçador à fisionomia da nova capital. Por certo se fragilizaram ou modificaram alguns de seus traços, mas resiste a identificação das temáticas que a constituem. Isto, contudo, anuncia-se nas percepções cotidianas, às quais escapa a complexidade da cidade real, em cuja existência tal como ela é, reside a maior metamorfose do conceito configurador do projeto que venceu o Concurso em 1957. Transformação que se iniciou ao se começar a construir Brasília, implodiu a cidade prevista para 500.000 habitantes (logo solicitados a serem 750.000) e atropelou a consecução desta meta quando oficialmente se implantou Taguatinga no ano seguinte e a partir de então, muitos outros assentamentos distantes do Plano Piloto, para alocar incrível quantidade de trabalhadores que erguiam a capital, do chão assinalado com uma cruz. Assim se inicia a descompactação absurda de um conceito morfológico que, se também não primava pela compacidade, propunha crescimento de Brasília após sua saturação demográfica e mediante cidades-satélites com moradia, trabalho, abastecimento e serviços básicos. Ironia cruel, assim haverem nominado os meros alojamentos implantados antes (e continuados após) a inauguração que hoje completa 60 anos. Por outro lado, esclareço não lamentar neste processo, ausência de atos cristalizantes do Plano Piloto; ao contrário, clamo por ações dinâmicas nele desde que aqui cheguei, pois assim aprendi a lidar com a memória inscrita no espaço. Atitude de salvaguarda dinâmica adotou-se no GT Brasília, consta de Cartas Patrimoniais, guiou o PPCUB e gestões do IPHAN-DF, além de ser aplicada em vários lugares significativos, dialogando entre resguardo de seus predicados essenciais como bens culturais e monitoramento de mudanças, naquelas coadjuvantes para identifica-los. Pois, trata-se de se atender a novas demandas históricas mantendo a presença da memória social inscrita nas configurações espaciais. Logo, o problema não são as transformações, mas sua aleatoriedade ou improviso desfigurante, quase sempre fruto da lacuna de agendas que examinem os atributos de cidade-parque propostos por Lucio Costa, definam sua presença nas quatro escalas de Brasília, infiram seu papel fundamental ou acessório na identidade de seus espaços e proponham diretrizes a se tornarem instrumentos legais, sobre quais características devem ser mantidas, e quais delas, passíveis de mudanças monitoradas e demandadas no futuro da coletividade. Maria Elaine Kohlsdorf, arquiteta e urbanista (UFRGS / UFRJ), é Mestre em Planejamento Urbano (UnB) e pós-graduada em Desenho Urbano (Universidade de Stuttgart, Alemanha). É professora-adjunto aposentada (FAU-UnB), professora-visitante em outras IFES brasileiras e no Curso de Arquitetura e Urbanismo do Unieuro-Asa Sul. Integrou a pesquisa DiMPU (FAU-UnB), o Grupo de Trabalho para construção do dossier UNESCO para inscrição de Brasília como Patrimônio da Humanidade (GT-Brasília, IPHAN-UnB-GDF) e a equipe que elaborou o Inventário Nacional de Configuração de Espaços Urbanos (INCEU), no IPHAN-DID. Dentre publicações coletivas e individuais, citem-se A Apreensão de Forma da Cidade (Ed. UnB, 1996, esgotada) e Ensaio sobre o Desempenho Morfológico dos Lugares (co-aut. Com Gunter Kohlsdorf, Ed. FRBH, 2017).
2 Comentários
Vera Helena Bins Ely
27/7/2020 21:15:52
Maria Elaine querida ! Lindo texto vindo da alma de quem adotou a cidade e dos olhos de quem a vê de sua morada. Parabéns!!
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MARTA DISCHINGER
8/8/2020 19:14:17
Querida Maria Elaine só hoje e já com muito atraso li tua linda homenagem e reflexão sobre a cidade Brasília, que se tornou tua cidade, e que o Ayrton Bueno me enviou.
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AutorEscreva algo sobre si mesmo. Não precisa ser extravagante, apenas uma visão geral. Histórico
Junho 2020
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