"Alegria, centelha de imortal chama! Deixa que tua magia reúna todos os que as leis da terra dividem; todos os homens serão irmãos, sob tuas ternas e amplas asas". (Ode à Alegria - Friedrich Schiller) Toda profissão tem um DNA, transmitido nas escolas e pelos profissionais mais antigos aos mais jovens. No caso dos profissionais da Arquitetura e Urbanismo, a genética carrega inúmeras virtudes, como a criatividade, o bom gosto, a aplicação nos estudos, a dedicação nos trabalhos e muitíssimas outras. Mas há uma intrusa nesse conjunto: a irreverência. Muito bem-vinda, claro, pois a alegria, o bom humor é um aglomerante, uma liga responsável pela união entre colegas e amigos. Constatei essa impressão nas entidades representativas das quais participei; em especial, no Instituto dos Arquitetos do Brasil e no Sindicato dos Arquitetos do Distrito Federal. Na verdade, não participei tanto, mas as frequentei de forma intermitente. Isso porque trabalhei no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, com ênfase nas ações relativas aos assentamentos rurais, e assim passava muitos dias viajando, principalmente, para os projetos de colonização da Amazônia. Mesmo considerando essa limitação, nunca me neguei a atender os chamados dos colegas dirigentes das Instituições. Foi o caso da famosa eleição que terminou empatada, quando fui mesário. Tive uma atuação discreta, exceto por um momento. Na apuração, apareceu uma cédula na qual, em vez do tradicional “x” no quadradinho referente à sua escolha, o efusivo eleitor desenhou uma margarida. A fiscal da chapa contrária contestou e solicitou a impugnação do voto, dando início a um provável conflito. Embora eu fosse levemente mais simpático ao seu grupo, o espírito democrático falou mais alto pela minha voz: - Não podemos anular. O colega manifestou sua vontade de modo claro e legítimo! O contrário poderia ter alterado o resultado do escrutínio! Outro episódio ocorreu nos dias antecedentes ao XX Congresso Panamericano de Arquitetos, em Brasília, organizado e conduzido com perfeição pelo Arquiteto Antônio Carlos Moraes de Castro. Fui convocado para um dos grupos responsáveis pela escolha dos profissionais que apresentariam seus trabalhos no evento, grupo esse coordenado pela Arquiteta Suely Franco Gonzalez. A cada um do grupo coube ler umas cinco propostas e propor suas aprovações, ou não, em reunião colegiada. A mim, coube quatro delas, facilmente aprováveis, e outra de validade duvidosa. Era a de um projeto urbano para a Amazônia absolutamente fora dos padrões convencionais. Eu havia assistido à palestra do autor, no Incra, exatamente sobre o trabalho. Sua concepção era a de uma cidade em madeira construída sobre as árvores, sem cortá-las, a uma altura média de vinte ou trinta metros do chão. Lembro-me de um desenho ilustrativo com uma ponte semelhante àquelas das culturas andinas antigas. Serviriam de passeios e me fizeram sentir um pouquinho de vertigem. A justificativa mais forte? Os mosquitos não voavam a essa altura, evitando a transmissão da malária, doença inclemente. Na época, não havia imagens de satélite em 3D, fundamental para o imprescindível levantamento da base para o projeto executivo. E a infraestrutura física, luz, água, esgoto? E a logística de implantação, transporte horizontal e vertical de coisas e pessoas? E os custos? Enfim, não existia viabilidade técnica nem econômica para tal inspiração. Por isso, meu receio era o do comprometimento da imagem do congresso já próximo, se o público classificasse o trabalho como “sonho de maluco”. Por sorte, uma colega do mesmo grupo havia assistido à mesma palestra em outro local e me acompanhou na preocupação. Diante do impasse, aflorou a essência científica da Professora Suely, encerrando a conversa: - Gente, vai que ele está certo? As gargalhadas aprovaram a propositura por aclamação. De todos esses anos de apreço por trabalhos tão importantes, restou uma grande certeza e um grande mistério. Pela ordem, as diferenças políticas, culturais, de preferências estéticas dos arquitetos e muitas outras nunca atrapalharam e, sim, ajudaram o IAB a manter seu curso em direção aos mais elevados ideais libertários, humanísticos, democráticos. E o grande mistério: quem foi que desenhou aquela margarida na cédula de votação? Brasília, 1.o de maio de 2020 Sérgio Antunes de Freitas é arquiteto e urbanista, servidor aposentado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra.
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Junho 2020
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