Os caminhos (e descaminhos) da prática do projeto arquitetônico
Edison Ferreira Pratini
O processo de projeto arquitetônico envolve diversas etapas e procedimentos que vão dos primeiros esboços para a concepção espaço ou volume, até a representação técnica detalhada para execução do edifício. Esse processo exige a compreensão e visualização da totalidade da concepção, não só por parte do arquiteto, mas por parte de todos aqueles envolvidos no projeto – desenhistas, engenheiros, cliente e construtores.
No processo tradicional de projeto, as etapas se desenvolvem como uma sucessão de desenhos que vão realimentando a concepção inicial. Esse processo muitas vezes se inicia por esboços ou croquis rabiscados em qualquer papel à mão no momento de um “insight” de definição do chamado partido arquitetônico. Os passos seguintes vão acrescentando mais e mais detalhes e refinamentos à medida que as áreas e dimensões são fixadas. O lápis dá lugar ao computador. Os detalhes são incorporados aos desenhos.
Fig. 1. Os esboços são desenhos cuja principal característica – e qualidade – é a imprecisão.
Paradoxalmente, à medida que a idéia inicial vai ganhando corpo e consistência – deixando de ser uma abstração, uma imagem mental um pouco difusa – a sua representação gráfica vai ganhando em complexidade e, por utilizar o sistema de projeções ortogonais do desenho técnico, torna-se mais e mais abstrata. Para manter a compreensão e visualização de projetos complexos, os arquitetos se valem de outros recursos como representações por perspectivas, modelos de volumes ou maquetes.
A popularização dos computadores pessoais e sistemas CAD na década de ’80 gerou uma grande expectativa quanto ao futuro do desenho, à resolução das questões de visualização e do processo de projeto em arquitetura. Imaginava-se sistemas que poderiam gerar alternativas de projeto a partir de um programa de necessidades ou da análise dos condicionantes, sistemas especialistas que dariam soluções num processo de consultas, sistemas automatizados que poderiam montar alternativas com um conjunto de componentes pré-fabricados, e tantas outras fórmulas mágicas não concretizadas.
Na prática, as aplicações da informática nos escritórios de arquitetura têm-se resumido à automação e racionalização do processo de desenho técnico trazida pelos programas CAD, ao aumento de produtividade, e à consistência do projeto pela integração dos dados das várias áreas envolvidas. Pouco mais se implementou no processo de projeto, mesmo tendo em vista a simples possibilidade de construção de modelos 3D para estudo de alternativas nas primeiras etapas do projeto arquitetônico. Esta prática poderia ajudar a resolver, ainda, as questões de visualização e desenvolvimento de projetos complexos, uma vez que o modelo 3D pode ser a base do projeto, em substituição aos desenhos bidimensionais. Infelizmente, no dia-a-dia dos arquitetos, os modelos 3D – ou maquetes eletrônicas – quando elaborados, servem apenas como produto de apresentação de um projeto já concluído, numa flagrante subutilização dos recursos computacionais disponíveis por todos que atuam em arquitetura.
Fig. 2. Maquete eletrônica para apresentação de um projeto já concluído
Na verdade, existem justificativas para essa situação onde o computador é rejeitado como instrumento de auxílio à concepção: muitos arquitetos referem-se à inadequação do instrumental de desenho em computador para o traçado rápido e espontâneo característico dos esboços à mão livre. Os programas também são projetados para trabalhar com mouses, tablets ou digitalizadores e conjuntos de menus que, obviamente, não permitem a liberdade, rapidez e espontaneidade necessárias para estabelecer um ciclo contínuo de informação do papel para olho para o cérebro para a mão e novamente para o papel da mesma forma que os esboços à mão livre e seu gestual fazem.
Fig. 3. O processo de “graphic thinking”, segundo Paul Laseau, é um diálogo contínuo que envolve o desenho no papel, o olho, a mente que processa o que foi desenhado e devolve para a mão o comando para novo desenho que, por sua vez realimentará o processo.
Além disso, esse mesmo instrumental também é inadequado para a geração rápida de modelos tridimensionais, por ter sido desenvolvido para operar em duas dimensões. Os programas, projetados para trabalhar com esse tipo de dispositivo pontual como o mouse e um conjunto de menus, não estimulam a elaboração dos desenhos rápidos, esboços conceituais ou modelos de estudo normalmente empregados na fase inicial do projeto. O desenvolvimento de interfaces mais amigáveis e intuitivas deverão estimular a prática do uso de modelos 3D como base do projeto desde a fase conceitual do objeto arquitetônico.
Apesar dessas dificuldades, o futuro próximo da prática do projeto arquitetônico já vem sendo delineado pelas novas gerações de estudantes de arquitetura nas escolas mais desenvolvidas, e pelos grandes escritórios americanos de arquitetura: os estudantes, mais acostumados com o instrumental computacional e menos com o lápis, passaram a usar o projeto 3D como seu ambiente de trabalho, obtendo as vistas e desenhos somente após o projeto completo; os grandes escritórios, utilizando a modelagem 3D em paralelo com desenhos CAD, começam a empregar a estereolitografia que permite construir uma réplica em resina a partir do modelo 3D. Percebe-se, portanto, uma transição gradual de todo o processo de projeto para o ambiente tridimensional.
Fig. 4. Os grandes escritórios de arquitetura começam a utilizar processos de prototipagem rápida para a construção de modelos em resina a partir do modelo 3D
Na ponta do desenvolvimento de programas e de equipamentos, busca-se interfaces mais amigáveis, com instrumentos de entrada de dados adaptados à maneira dos arquitetos. Pode-se encontrar pesquisas para desenvolvimento de intérpretes de croquis perspectivos: desenha-se em um tablet um croquis de um paralelepípedo, por exemplo, e o sistema reconhece a forma e gera um paralelepípedo tridimensional com as mesmas dimensões e proporções. Outras pesquisas vão no sentido de tornar os programas CAD inteligentes, de forma que as entidades (objetos) não sejam somente um amontoado de pontos e linhas, mas que sejam definidas e se comportem como os próprios elementos arquitetônicos que querem representar. Neste caso, uma parede não será apenas formada de dois traços paralelos, mas será um objeto íntegro, com características de peso, resistência, acabamento de superfície, cor, etc. Mais além, encontram-se pesquisas em realidade virtual, a exemplo da proposição de um sistema para a descrição de superfícies 3D e geração de esboços tridimensionais diretamente com o gestual cotidiano: ao invés de desenhar em uma folha de papel, descreve-se a forma com gestos, da mesma maneira que se usa gestos como auxiliar da fala para descrever uma forma ou dar noção de dimensões de um objeto para um interlocutor. Pode-se, desta forma, criar, moldar e manipular os objetos (criar e deslocar uma parede virtual, por exemplo, para logo a seguir abrir o vão de uma janela) como se fossem reais e existissem no local onde o usuário se encontra.
Fig. 5. Uma das pesquisas na área de realidade virtual propõe a geração e manipulação de verdadeiros “esboços” tridimensionais, descrevendo as formas com gestos no espaço
Essa evolução do uso de computadores e das novas tecnologias em arquitetura tem acompanhado, dois passos atrás, as novas tecnologias utilizadas na engenharia mecânica, principalmente na indústria automobilística e aeronáutica. Projeto e digitalização 3D, prototipagem rápida ou estereolitografia são tecnologias já bem conhecidas e testadas nessas indústrias. Seguindo essa tendência, pode-se supor que num futuro não muito remoto, os arquitetos estarão projetando em ambientes de realidade virtual, passeando por projeções holográficas de edifícios construídos com as suas próprias mãos em canteiros de obras virtuais e interativos.
Fig. 6. As indústrias automobilística e aeronáuticas já se utilizam dos recursos da realidade virtual para concepção, modelagem e manipulação dos seus componentes. Da mesma forma, num futuro próximo, os arquitetos estarão manipulando maquetes virtuais em ambiente de realidade virtual.
Este artigo foi publicado originalmente na revista Arquitetura CADesign, Ano 1, nº 2.
Edison Pratini é arquiteto, Doutor, Professor Adjunto da área de representação gráfica e tecnologias computacionais e pesquisador da Universidade de Brasília.